Outro olhar sobre a anorexia nervosa (gatilho)

by - julho 15, 2022

A caracterização corporal do indivíduo é um elemento muito claro do distúrbio, porém, a anorexia nervosa vai além de corpos excessivamente magros. Desse modo, é essencial discutir as implicações de tal transtorno pelos diversos ângulos que afetam seus portadores. 

Para rigor de definição diagnóstica, o Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais edição 5  (DSM V) aponta três características principais do distúrbio. Nesse sentido, são sintetizadas por uma persistente restrição da ingestão calórica, um medo intenso de ganhar peso ou engordar (que leva a comportamentos que interferem no ganho de peso) e uma distorção da percepção do seu próprio peso ou forma corporal, em que o indivíduo "mantém um peso corporal abaixo daquele minimamente normal para idade, gênero, trajetória do desenvolvimento e saúde física". Com base nessa definição podemos fazer algumas interpretações: como o indivíduo sofre um déficit de ingestão calórica, não é apenas peso que ele irá perder, sua "reserva" nutricional será afetada impactando a concentração de vitaminas e nutrientes essenciais para o bom funcionamento físico, mental e manutenção da homeostase, além de envolver uma grande e significativa redução da massa magra (músculos, ossos, órgãos e líquidos corporais).

No meu caso específico, como pessoa diagnosticada com anorexia nervosa, além dos efeitos clássicos de redução da massa corporal, o transtorno alimentar levou a um quadro clínico neurológico denominado ataxia sensitiva devido uma grave deficiência de vitaminas do complexo B (principalmente B12) e ácido fólico. Essa doença afeta a propriocepção que é basicamente "a capacidade inconsciente de sentir o movimento e a posição das articulações no espaço pelo sistema nervoso central, sem usar outros sentidos", ou seja, afetou o meu equilíbrio e capacidade de locomoção. 

Em mim, a ataxia sensitiva começou de forma muito discreta: pela perda da sensibilidade dos meus dedos do pé (exatamente, eu não sentia eles), era como uma dormência constante. Quando iniciou, eu havia acabado de começar a fazer aula de dança e não entendia porque tinha tanta dificuldade para fazer os movimentos, sempre tive facilidade e desenvoltura, então, devido ao risco de queda tive que sair das aulas. Com o tempo, isso se propagou para o meus pés e mãos (membros periféricos), minha sandália saia do pé e eu não sentia (perdia ela constantemente pela casa), sem equilíbrio para andar eu me movia em casa segurando nas paredes, subir ou descer escadas era um imenso desfio (mesmo segurando o corrimão eu não conseguia, precisava do auxílio de outra pessoa), ao fechar os olhos eu perdia totalmente o equilíbrio e caía (tanto é que tomava banho sentada), perdi a força nas mãos (não conseguia abrir garrafas) e não conseguia escrever bem (a caligrafia saía ilegível), até que chegou ao ponto de não conseguir sair de casa sem o apoio de outra pessoa, perdi totalmente a independência. Se afetou a parte neurológica, a parte química cerebral também sofreu, levando a uma intensificação da dor psíquica: tudo isso me abalou bastante e um quadro depressivo persistente me acompanhou.

A anorexia levou a ataxia sensitiva que, por sua vez, intensificou a anorexia em um ciclo vicioso de martírio: devido ao impacto no equilíbrio e mobilidade eu não conseguia fazer atividade física, e na minha cabeça pensava que se eu comesse iria engordar e se engordasse iria ficar mais feia, assim, comia o mínimo possível. Acredito que tenha ficado claro quão grave é esse distúrbio e com ele pode limitar a vida, mas, se não ficou, chamo a atenção para um dado do Dr. Dráuzio Varela: a anorexia nervosa pode ser letal, uma taxa de 15% a 20% dos indivíduos com esse distúrbio acabam falecendo.  

Aquela metáfora do indivíduo magro se ver "gordo" no espelho é real. Mesmo minhas roupas estando extremamente folgadas e o meu peso baixo, eu não estava satisfeita com o meu corpo. Sempre me olhava achando "gorduras". Comer é um ato que remete culpa e quando eu achava que comia muito, compensava não comendo nada no dia seguinte ou tentando vomitar. Desmaios eram frequentes, já cheguei até a desmaiar no banho (olha o perigo!) sorte que ao sentir isso eu chamei a minha mãe que chegou no exato momento em que perdi a consciência. Ia frequentemente ao hospital tomar soro. Ademais, minhas unhas constantemente quebradiças, cabelos caindo e imunidade baixa são reflexo do transtorno alimentar.

Atualmente minha alimentação caminha para uma estabilidade e ganhei uns 7kg de massa magra. Com o apoio de uma equipe multidisciplinar (psiquiatra, psicólogo, nutricionista, fisioterapeutas e outros profissionais) e de pessoas próximas como amigos, família, professores, orientadora e o coordenador do meu curso, eu consegui evoluir bastante tanto é que parei de usar a bengala há pouco mais de uma semana e voltei a dançar. Contudo, não consigo ainda afirmar uma cura, há dias e dias, em alguns é mais fácil e em outros nem tanto. E sim, comer me remete culpa e um sentimento de traição a Ana (anorexia nervosa), mas estou tentando.

A imagem à esquerda representa o "auge" da anorexia e à direita sou eu atualmente (ambas com a mesma roupa).


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