Como falar de algo assim? Algo ao mesmo tempo tão pesado, delicado, coletivo e pessoal.
Tive uma overdose na semana Santa, fiquei de quinta-feira a sábado no hospital e acho importante falar sobre isso como forma de alertar: não façam isso. Se não for fatal (e as chances são altas) será uma experiência no mÃnimo péssima, recheada de consequências temporárias, se tiver sorte, ou permanentes que são extremamente exaustivas, frustrantes e dolorosas. Por isso, antes de começar efetivamente esse relato, eu peço (ou melhor, imploro): não me julguem, condenem ou ataquem, apenas leiam de coração e mente aberta.
Não posso falar que um motivo ou gatilho especÃfico me levou a ingerir os 57 comprimidos, de todo modo, o foco principal desse texto não é dissertar sobre tais motivações, mas sim as consequências desse ato, a experiência no todo.
Ao chegar no hospital de ambulância fui levada a uma sala onde realizaram o procedimento mais imediato de lavagem estomacal e a testagem de COVID-19. Sobre esse primeiro mecanismo, introduziram uma sonda em mim (espécie de tubo transparente que lembra uma mangueira) pelo nariz até o estômago. Em primeiro lugar, foi muito desconfortável e doloroso, até chegar no seu destino final, o tubo feriu bastante o meu nariz e a garganta (principalmente ela), saiu sangue e vomitei quando chegou nessa parte do meu corpo. Eles injetam e puxam um lÃquido pela sonda, mas não lembro de muitos detalhes, apenas que senti um incômodo na garganta por dias.
Após o procedimento inicial me levaram para o leito, os enfermeiros que estavam de plantão ali foram bem legais e atenciosos comigo. Nesse momento já tinham começados os efeitos do excesso de medicações que o meu corpo absorveu. Além de uma certa sonolência primária, estava muito tonta, enjoada, confusa mentalmente, não conseguia andar bem (tinha perdido totalmente o equilÃbrio), comecei a ter alucinações visuais (as paredes eram brancas mas eu via uma espécie de mofo preto em todo lugar, além de uns pontinhos coloridos que assumiam formatos e aranhas voando) e o pior: não conseguia ler nem identificar nenhuma letra, as palavras apareciam todas borradas para mim. Tudo isso me assustou bastante, nesse momento já tinha batido o arrependimento e eu me questionava (até cheguei a perguntar para um dos enfermeiros, o mais simpático) se iria morrer, só para terem noção de quão intensos foram tais efeitos, porém, o pior ainda estava por vir.
Acordei sexta-feira um pouco confusa e desorientada, sentindo muita dor nos lábios e na lÃngua. Eu me encontrava no setor de emergência, olhei ao meu redor e vi que estava conectada a vários equipamentos, além de estar com uma máscara de oxigênio. Um enfermeiro me situou do que tinha ocorrido: tive uma crise convulsiva enquanto dormia, uma bem feia nas palavras dele, tanto que até fiz xixi enquanto ela ocorria o que explicava o fato de eu estar de fralda e sem as roupas de baixo (detalhe constrangedor) e mais tarde (depois de receber alta) olhando os exames vi que tive uma taquicardia sinusal, ou seja, foi bem grave.
No final da manhã de sexta-feira eu voltei para o leito (estando de jejum desde o momento em que cheguei na UPA na quinta-feira) e me informaram que eu estava aguardando uma vaga para ser transferida ao hospital. Nesse momento os enfermeiros já eram outros (havia acabado o plantão dos que me acompanharam na noite anterior) e senti um tratamento bem insensÃvel e muitas vezes indelicado da parte deles chegando a fazer comentários (de crÃtica e julgamento) sobre o meu caso na minha frente, como se eu não estivesse lá e ignorando as minhas tentativas de explicação ou defesa. Concluà que muitos profissionais da área da saúde não estão preparados para lidar com casos delicados e graves de saúde mental, como uma tentativa de suicÃdio, falta em muitos empatia e a capacidade de acolher pois tais atitudes fizeram com que eu me sentisse mais mal. Não que eu esperasse que as pessoas passassem a mão na minha cabeça e aceitassem tudo isso sem nenhum conflito, sei que o que eu fiz não foi correto (principalmente com os meus amigos, familiares e comigo mesma) e nem é a melhor solução, porém, eu me encontrava fÃsica e emocionalmente vulnerável. Em situações assim, faz muita diferença mostrar que estão ao nosso lado nessa luta, que se importam e principalmente que somos importantes, porque eu já carrego o sentimento provavelmente disfuncional de que sou um problema ou peso na vida das pessoas e quando se afastam ou agem como esses enfermeiros, de certa forma fortalece esse pensamento, confirma e aumenta essa dor.
Consegui a transferência para o hospital na noite de sexta-feira, fui de ambulância para lá e um moço muito legal que até fez uma corridinha divertida enquanto me levava na cadeira de rodas (sim, tive que usa-la pois não conseguia andar) nos acompanhou no inÃcio. No hospital fiz vários exames (onde foram identificados alguns danos e pontos de atenção no meus rins e fÃgado), passei por uma consulta com o psiquiatra e na manhã de sábado recebi alta. Todavia, alguns efeitos da overdose se estenderam por mais uns dias (como a confusão mental, tontura, falta de equilÃbrio e dificuldade para caminhar além das alucinações que se tornaram mais pesadas).
De lá fiquei alguns dias na casa da minha tia me recuperando (até segunda-feira de tarde, quando voltei para a minha república). Durante esse perÃodo, as alucinações e paranoias se intensificaram e foram experimentadas por mim em três sentidos: visual, auditiva e sensorial. Cheguei a ver além dos pontos e aranhas, pessoas que não estavam lá e a ouvi-las e senti-las me tocando. Foi bem assustador porque essas alucinações não foram amigáveis, mas sim intimidadoras, resumidamente uma experiência totalmente horrÃvel, amenizada conforme o excesso de medicamentos saÃam do meu organismo e também pela administração de novas medicações psiquiátricas do grupo de antipsicóticos, bem como antidepressivos.
Ademais, na segunda-feira do dia 18 (meu aniversário), tive uma consulta com o psiquiatra previamente agendada, acompanhada pela minha tia onde veio um novo diagnóstico (anorexia nervosa) e a hipótese diagnóstica (a qual ainda precisa ser investigada detalhadamente) que pode explicar a minha instabilidade emocional, as coisas que sinto e como reajo a elas. Segundo o meu psiquiatra, o que tenho não é apenas um transtorno de humor (como depressão e bipolaridade), mas sim um transtorno de personalidade e tudo aponta para o Transtorno de Personalidade Borderline (realmente, estudando mais a fundo por materiais técnicos, como livros e artigos cientÃficos, essa hipótese diagnóstica faz muito sentido).
Sigo, por fim, nessa caminhada e luta contÃnua para continuar bem e entender o que acontece comigo. Desde essa última crise estaria mentindo se falasse que estou totalmente bem, porém, com o ajuste da medicação sigo em direção a uma estabilidade psÃquica e emocional. Todavia, como tudo na vida há dias mais fáceis e outros em que a batalha parece estar totalmente perdida e o controle escorre pelos meus dedos, o mais importante é que estou tentando e principalmente: quero viver.